Manuel: um Quixote do Séc. XXI

sobre a obra Manuel Manuel-manual de Leitura de Alvaro García de Zúñiga

 

A entidade “Manuel” nasceu no ano 2000. Digo “entidade” porque é uma obra assumidamente multiforme, e que, a meu ver, não esgotou ainda as possibilidades de ganhar forma, inclusivamente perdendo-a. Será o “Alvaro-Manuel: Machine” titânico e quixotesco projeto de forma virtual para acolher o todo-Manuel.

 

O primeiro Manuel, foi o manual de instruções de uma obra plástica que era um livro “A Finger for a Nose” do coletivo Entertainment Co. dos artistas João Louro e João Tabarra, coletivo a que o Álvaro se juntou para esta obra, realizada para a primeira e última bienal de Oeiras, que foi também a última – obra conjunta – deste coletivo.

 

A Finger for a nose (símbolo da blablaLab) é uma peça de teatro feita de passos de peças de Shakespeare atribuídos a personagens do século XX. A sua capa pretendia ser um espelho no qual ficasse refletida a cara de quem olhasse para o livro. Tal como a obra de Shakespeare, o livro é sobre cada um de nós. Talvez também uma reflexão sobre o mundo pós-guerras mundiais, sobre a criação contemporânea, sobre a lógica do mercado da arte, sobre a política espectáculo, sobre um mundo em profunda mudança. Um mundo em que convergiram todas as promessas e todos os falhanços. Um mundo Becquetiano, provavelmente.

 

Curiosa também a ideia de apresentar um livro na categoria de obra plástica. Aqui também podemos discernir claramente a influência do Alvaro neste trabalho da Entertainment Co. Um livro ainda para mais feito de peças de teatro. Com todas as frases de todas as peças de Shakespeare, baralhadas reordenadas para obter histórias, histórias de histórias, histórias universais e sempre tão singulares, as nossas histórias.

 

Mas um livro é um objeto, logo necessariamente plástico.

 

Para o Alvaro a criação artística é um hardware matricial que existe a montante de qualquer realização podendo depois “aparecer” ou declinar-se em qualquer forma, poesia, música, arte….

 

Com a sua obra “Manuel”, Alvaro aplicou-se a explorar a transferência da ideia artística para múltiplos suportes.

 

Assim, o primeiro Manuel – o que nasceu no ano 2000 – era o modesto livro de instruções do esfuziante e brilhante “A Finger a For a Nose”

 

Muito rapidamente este Manuel cresceu, pois através de Leopold von Verschuer, Alvaro foi convidado, por Markus Heuger, a fazer um programa radiofónico para o Studio Akustische Kunst da WDR3. O Alvaro teve a sorte de poder aproveitar os últimos anos de glória deste extraordinário estúdio – o Hollywood da radiofonia – onde gravaram todos os grandes compositores contemporâneos do século XX, Cage, Kagel, Stochausen, etc. Um estúdio para Arte acústica, teatro radiofónico não narrativo.

 

Graças a esta encomenda, Manuel, compilação multilíngue de manuais, começou a ganhar corpo de obra acústica e monumental, inicialmente previsto para durar uma hora, fez-se a trilogia de 3 x 52min (Manuel, Manuel – a Luta continua, Manuel – a última palavra), que serviu de base à obra literária Manuel – Manuel-Manual de Leitura.

 

Manuel meio-homem, meio manual de instruções foi ganhando peso de personagem-alter ego. Tornou-se uma máquina desenhada para integrar tudo o Alvaro tivesse feito, viesse a fazer e as suas referências.

 

Naturalmente que esta obra que foi plástica e depois acústica saltou rapidamente para a cena, foi Manuel sur Scène, um formato de leitura concerto, polifónico e capaz de integrar tudo, à boa maneira alvariana.

 

Explicação de Manuel sur Scène por AGZ:

 

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“Na sequência da peça radiofónica Manuel – meio-homem, meio-manual de instruções – esta versão será um verdadeiro “manual em cena” de geometria variável, no qual se podem cruzar e transformar em migalhas todas as obras, peças, textos alvarianos, migalhas que por sua vez (Manuel na cozinha : Manual de cozinha) uma vez misturadas, temperadas e salteadas à moda daquele “que diz não importa o quê” assim que a ocasião o permitir servirão de pretexto a inúmeras delícias cénicas.”

 

Ou, por outras palavras:

 

“Manuel em cena é um projecto auto-reflexivo que se inscreve na sequência dos meus outros textos (peças, prosas, poemas) e significa de certo modo para mim um segundo ciclo do meu teatro. O primeiro foi Actueur, três pequenos textos de “nem teatro” com os quais fechei, para assim dizer, o ciclo da minha “escrita teatral”; após o que, esse exercício, foi, de algum modo, relegado a uma função mais instrumental para constituir o pano de fundo de uma nova série de peças sobre temas como o erotismo, a morte, o poder, ou a noção de estrangeiro. Com Manuel em cena, o salto faz-se desta vez em várias direções em simultâneo. Incorporando a possibilidade de fazer “marcha atrás”, através de uma espécie de “manual (de como se estar) sobre (uma) cena”, recorrendo de forma permanente às minhas peças e textos anteriores mas também a toda outra fonte que se possa revelar interessante para este Manue(a)l. […] e todos os meus outros textos não-teatrais, e também textos relacionados com eles. [1]”

[fim de citação]

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Manuel, tanto pela sua génese como pelo processo que subentende, um work in progress, representa um salto quântico em todas as direções. A cena com o seu o espaço e espaço acústico, é o ambiente natural de Manuel. Mas podemos ir mais longe, e imaginar que também está contido no Manuel-livro um embrião de uma nova literatura. Uma forma de literatura a que não basta nenhum suporte, por precisar deles todos.

 

Em RadiOthello, Alvaro, recorrendo a MacLuhan, sintetiza uma pequena teoria do Espaço acústico através de um dos personagens da peça:

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A chave do espaço acústico, é a multiplicidade dos sentidos simultâneos. Para o compreender não se pode dissecar; é preciso adicionar, somar, pois há montes de partes diferentes espalhadas ao mesmo tempo. Para compreender o espaço acústico, é preciso vê-lo como um todo e não nos fixarmos só numa parte. Por outras palavras, o espaço acústico exige uma apreensão simultânea da forma e do fundo, uma cooperação em todos os sentidos.

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Manuel, não é realmente, ou apenas uma partitura, é antes um livro que procura incorporar o espaço acústico numa forma literária. Creio que é por este motivo que Alvaro afirma no início das didascálias da peça radiOthello que esta está intimamente ligada ao Manuel e que escreveu à mão, na última versão do seu Manuel-obra literária “This is an audio book”.

 

Tanto a peça radiOthello como o livro-projeto Manuel, conjugam intrinsecamente a reflexão sobre o pensamento, os media e os transferes entre eles, sobre o som, sobre o espaço acústico, sobre a perceção, a que se soma, nas duas obras, um questionamento sobre as línguas e as traduções entre elas.

 

Pode parecer estranha a afirmação-tese de que existe também uma relação íntima entre este livro de Alvaro García de Zúñiga e o D. Quixote de Miguel de Cervantes. Para começar ambos são filhos do entendimento (expressão usada por D. Miguel no prólogo do primeiro livro). Ambos têm duas partes e a primeira delas está contida na segunda. Ambos se atacam de forma original à relação íntima entre a perceção e a escrita. Ambos captam um momento histórico de transição profunda.

 

A descrição inicial do personagem Manuel explicita a problemática do livro e remete claramente para D. Quixote:

 

“Manuel-meio homem meio manual de instruções – não consegue compreender a realidade a través dos livros. E vice-versa (a través dos livros a realidade). E vice-vice (a través dos livros os livros) e versa-versa (a través da realidade a realidade).”

 

A primeira frase epígrafe de Manuel: “o poema é a soma do conjunto infinito de formas no seio das quais se sente sempre igualmente apertado.” frase que Alvaro atribui a Akenaton. Que podemos imaginar ser o controverso faraó (herético e revolucionário) que reinou no século XIV antes de Cristo, marido de Nefertiti. Mas que se calhar se refere ao coletivo artístico Akenaton (1984)[2], cuja intenção explícita era borrar as delimitações entre as diferentes práticas artísticas.

 

Se a escrita moldou a perceção e conduziu a visões compartimentadas do mundo, em Manuel antevemos a reação a este efeito e um esforço de regresso a um sistema de perceção holístico no qual é difícil – ou impossível de determinar qual é preponderante, se é a “razão gráfica” (Jack Goody, 1979) das listas e das hierarquias, ou se é a imersão num espaço multidimensional e irremediavelmente rizomático que se estende ad eterno e sem descanso em todas as direções ao mesmo tempo. É o Manuel-manual livro-audio percursor da literatura quântica. Uma literatura aplicada a sistemas complexos e virtualmente sem fim, e uma literatura para um tempo de imersão acústica, mas sobretudo virtual. Uma literatura que, a exemplo da obra fundadora de Cervantes na época do Renascimento, possa agora servir de guia num mundo em que o virtual se desdobra inexoravelmente colocando desafios completamente novos à humanidade.

 

Cada época tem os seus meios de expressão, e aquilo que em Manuel – e noutras obras suas – o Alvaro me parece sugerir é que a nossa ainda não encontrou o modelo que lhe corresponde, mas fá-lo ao mesmo tempo que aponta para uma nova forma, tão complexa que só a conseguiremos talvez compreender quando tivermos à disposição as aplicações e as capacidades de processamento à medida desta ambição.

 

Manuel – moinho de palavras – é assim o Quixote do nosso tempo, sempre aquém e sempre além do compreensível, na sua busca incessante de sentido, vai inventando processos e alargando as fronteiras daquilo que se pode, e como, pensar.

 

Teresa Albuquerque

Intervenção na Fundação das Casas de Fronteira e Alorna

17 de Janeiro de 2018

 

 

[1] Por exemplo : manuais e textos teóricos sobre o teatro e a representação (Stanislavski, Strassberg, M. Tchekhov, P. Brook, etc.) Outros textos teóricos sobre o pensamento e a linguagem tais como o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein e as suas outras obras ; A palavra e a Coisa de W. V. O. Quine, etc. Outros textos teóricos (Posmodernismo para principiantes de R. Appignanesi / Ch. Garratt, La théorie du bordel ambiant de R. Moreno). Textos sobre física quântica e a inteligência artificial (La société de l’esprit de M. Minski, O cântico dos cânticos de Pharabod, Ortoli, etc.). Etc.

[2] https://fr.wikipedia.org/wiki/Akenaton_(performeur)