O homem que vive dentro

O homem que vive dentro” a propósito de “O Homem que vivia dentro dos sonhos” de Natália Constâncio, Ed. Colibri 2016

Lançamento na Biblioteca Orlando Ribeiro, Sáb. 05 de Novembro 16, 16:00

 

a Alvaro García de Zúñiga e Fernando Mascarenhas

 

Muito agradeço à Natália – e à Maria Figueiredo que estabeleceu este contacto – o convite e a oportunidade de estar aqui hoje a apresentar o este livro.

Começo por explicar que não tenho nenhuma competência em literatura, nenhum grau académico que legitime estar aqui a apresentar este livro. Provavelmente, por consideração pela autora, não deveria ter aceite o convite. Mas ao mesmo tempo não podia deixar de aceitar. Não porque possa ou tenha algo de relevante a dizer, mas porque 1) Como todos os bons livros, este dá-nos a sensação de ter sido escrito para nós, ecoa em nós como se falasse connosco 2) Cervantes, e em particular o Quixote, tornou-se um tema familiar pelo facto de ter tido o privilégio de partilhar, durante 20 anos, a minha vida com um imenso escritor, autor, criador de múltiplas facetas, Alvaro García de Zúñiga.

Pode parecer gratuito que eu comece por trazer a lembrança dele neste contexto. Quem o conheceu perceberá bem porquê. Perceberá porque não posso dissociar o convite que me foi feito para estar aqui hoje, do Álvaro. Quem tiver lido o livro da Natália, e tenha conhecido o Alvaro perceberá claramente porque faço esta associação. Perdoar-me-ão então que junte a este comentário-percurso pelo excelente romance que nos oferece Natália, uma evocação a Alvaro García de Zúñiga. Aliás não conheço melhor forma de responder ao desafio de apresentar “O homem que vivia dentre dos sonhos” que não seja invocando o Alvaro.

Tal como Cervantes, Alvaro teve uma vida agitada e difícil, repleta de situações limite, ao contrário de Cervantes morreu antes de ser inequivocamente reconhecido, com a idade em que D. Miguel começou a sê-lo: aos 56 anos. Artista de registo contemporâneo Alvaro identificou-se profundamente com Cervantes, cuja vida e obra estudou como poucos já que considerava que “El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha” fue y seguirá siendo un extraordinario instrumento para entender la realidad y el mundo en su aspecto mas actual. »[1] . Isto significa que – e em particular nos últimos anos de vida – entre uma master-classe em Roma, na Sapienza, em 2011, e o longo e épico ciclo “Ler D. Quixote”, que atravessou três temporadas da programação do Teatro Municipal de S. Luiz, em Lisboa, Alvaro infiltrou-se na mente de Cervantes, absorveu e assimilou o sistema Cervantes.

Isso aconteceu inclusivamente até em aspectos desconcertantes. Tal como Cervantes, o dia da sua morte foi a 22, sendo a data oficial de óbito o 23 Abril.

Numa comovente nota de rodapé inserida nas suas «Anotações sobre D. Quixote », Alvaro escreve : « A lenda quer que Cervantes e Shakespeare tenham morrido no mesmo dia, a 23 de Abril de 1616, e eu também. Tanto é assim que para honrar a data em que morreram ambos Miguel de Cervantes y William Shakespeare a UNESCO estabeleceu o 23 de abril como Dia internacional do livro. Mas na realidade pareceria ser que o bardo inglês morreu no dia seguinte, ou senão dez dias depois. Por isso, da minha parte, para manter a afirmação da lenda, suspeito que não apenas morreram os dois no mesmo dia – seja este o 22 ou o 23 –, senão que inclusivamente no mesmo instante…  e de seguida – tal como o narrador do livro de Natália no prólogo de “O Homem que vivia dentro dos sonhos” – cita a dedicatória de Cervantes ao conde de Lemos da sua obra póstuma “Pérsiles” – «Puesto ya el pie en el estribo…»[2]

Pode considerar-se que estas coincidências são anedotas, mas creio que nos situam no coração de um dos temas do livro de Natália: como aceitar ou domesticar a morte (e se não será esse o propósito da literatura) e qual a relação da literatura com a morte.

O romance de Natália começa já depois da morte de D. Quixote e decorre durante os últimos dias de vida de Cervantes. Pouco tempo antes, no início do ano anterior (1615) Cervantes “matou” o seu/nosso Quixote para impedir que outros se apropriassem dele, como tinha feito o velhaco Avellaneda, que usou as personagens do nosso escritor para as denegrir maldosamente. Assim o declara a sua pluma no final do livro “Para mi sola nació D. Quijote y yo para el”. E se este é um facto inegável também é verdade que este livro se tornou num manancial inesgotável (intarrissable, diria o Álvaro) de todo tipo de ficção e apropriação literária – chegando a ser objeto de um conto de Jorge Luis Borges “Pierre Menard, autor del Quijote” (1941)[3] em que a personagem principal decide reescrever as aventuras do nosso cavaleiro, não de memória, mas por impulso autoral próprio, conseguindo realizar essa proeza – interrompida pela sua própria morte – com alguns capítulos do livro. (A vida do personagem Pierre Ménard será depois ela própria ficcionada por Michel Lafon, num romance editado em 2008).

Não só o Quixote deu e dá azo a infinitos frutos literários como E. C. Riley, grande especialista cervantino, indo mais longe lembra: “Ortega y Gasset observó que toda novela contiene, “como una íntima filigrana”, al Quijote dentro de si, “como el fruto el hueso””[4], e Alvaro citando Trilling acrescenta “Puede decirse que toda prosa de ficción es una variación del tema del Quijote [5]”. Estamos, como vêm, no terreno da citação da citação da citação…, da declinação de uma matriz que nos enforma, na qual nos reconhecemos, mas cujos limites são sempre inalcançáveis. Ao escritor cabe tentar chegar o mais a montante possível na origem dessa fonte, ao segredo que poderá, eventualmente, talvez, unificar o processo imparável de desmultiplicação.

O Livro de Natália conta os últimos dias de Cervantes, narrando uma espécie de terceira saída do Quixote (ou do seu fantasma) que vem visitar Cervantes. Cavalheiro como sempre D. Qui veio para ajudar o mestre a despedir-se da vida. Criatura e criador ganham neste livro estatuto idêntico de personagem acrescentando mais uma camada às múltiplas da obra cervantina; debruçam-se sobre si próprias e as suas vidas, “reais” e “ficcionadas”, relembrando episódios e discutindo com alegria, camaradagem e emoção enquanto esperam pelo desfecho fatal e anunciado.

A ideia das múltiplas perspectivas sobre os eventuais factos era cara a Cervantes e um ponto que o Alvaro sublinhava sempre que podia “A história não é mais do que uma forma de ordenar as palavras”[6]. No romance de Natália é o próprio Quixote que a autoriza à reapropriação de que este livro é objeto, quando, por exemplo, ao discorrer sobre a função do historiador que “restitui factos”, e do poeta que os interpreta, afirma: “A verdadeira ciência será, na minha humilde opinião, a soma das pequenas histórias. A verdade combina com a mentira. […] não acedemos ao passado pela interpretação dos textos?”. Natália autoriza-se assim a fazer esta incursão na mente Cervantina, desenvolvendo uma hipótese, em forma de romance, sobre o que podem ter sido os últimos dias e pensamentos de D. Miguel.

Cervantes foi parco em pormenores sobre a sua vida, existem indícios, fragmentos, mas da sua própria pena não há confissões, apenas podemos supor através do que escreve episódios mais ou menos autobiográficos[7]. Esta escassez de detalhes pessoais é um convite à imaginação que Natália aceita com elegância e sofisticação emulando a capacidade de Cervantes de nos colocar em abismo perante uma realidade cuja perceção é instável e irredutível a uma única versão ou hipótese.

Sob o pano de fundo da evocação e partilha das aventuras comuns e das motivações pessoais que Natália vai deduzir a partir de um aturado estudo do que se sabe sobre Cervantes e a época em que viveu, Natália deixa-nos mais um testemunho, mais uma versão que se soma ao, e se inscreve no maravilhoso e inesgotável sistema cervantino. Um sistema que para além de tudo o que se possa dizer na esfera literária e intelectual, e sabemos que é muito (“Infinito” como me disse um dia o Eduardo Lourenço), tem uma graça que reside – com a força de uma evidência – na generosidade, na bondade, na coragem e capacidade de ternura que perpassa através das linhas escritas, conduzindo a mão do poeta-escritor, elevando-o, e nós com ele, sempre acima das pequenas misérias, a um patamar em que o conhecimento, a sensibilidade e o interesse pelo outro são os verdeiros motores da obra criativa e das relações entre os homens. A obra de Cervantes é uma obra cheia de esperança e é uma esperança contagiosa que reencontramos também no livro de Natália.

Numa excelente nota de Bruno Viera Amaral publicada no dia 1 de Novembro, no Observador, intitulada “Podem os livros trazer os mortos de volta”[8] o autor escreve sobre a literatura como um “monumento funerário e como salvação”. Creio que esta ideia está no centro do romance de Natália. 400 anos depois, Cervantes continua a renascer e a morrer connosco, cada lembrança é um monumento funerário que o e nos salva da grande questão que impende sobre os da nossa espécie: a mortalidade e a memória. Bruno Viera Amaral cita também no seu texto a escritora canadiense Margaret Atwood, que diz: «a literatura é outro meio de atribuirmos significado à ausência e valor aos restos mortais, ou seja, é também uma operação ritualizada de resgate dos mortos. Não é o aspirar à eternidade através dos livros, antes o esforço de se recuperar para o mundo dos vivos, através de um trabalho de memória, arqueologia e investigação, as pessoas e as realidades sobre as quais a morte lançou um manto de incerteza e de esquecimento.»

Em “O Homem que vivia nos sonhos”, Natália leva-nos a imaginar e reviver, os últimos dias de Cervantes pela voz do médico que o tratou, e a visita de D. Quixote, a sua criação – ou o seu criador –  esbatendo inteligentemente a relação entre o autor e obra criada numa ambivalência que encontramos também no título do livro “O Homem que vivia nos sonhos”: era Quixote? Era Cervantes? É qualquer homem? O homem que vivia dentro dos sonhos é afinal o homem que vive dentro (da morte, e [para lá dela] em nós). É, claro, cada um de nós, pois não podemos deixar de ser o que sonhamos e é aí que moram os nossos mortos.

Neste esfumar de fronteiras, regressamos ao prólogo, a morte e o sono são irmãs e o sonho, fruto do sono, é sinónimo da irredutibilidade da vida, do renascer constante que as obras do espírito realizam e que, por coincidência ou não, ecoa também no nome da nossa querida autora “Natália Constâncio”.

Obrigada e parabéns Natália

 

Teresa Albuquerque

Novembro 2016

[1] «Anotaciones sobre Don Quijote » de Alvaro García de Zúñiga

[2] “Señor; aquellas coplas antiguas que fueron en su tiempo celebradas, que comienzan: «Puesto ya el pie en el estribo», quisiera yo no vinieran tan a pelo en esta mi epístola, porque casi con las mismas palabras las puedo comenzar diciendo:

Puesto ya el pie en el estribo,

con las ansias de la muerte,

gran señor, ésta te escribo.

Ayer me dieron la extremaunción, y hoy escribo ésta. El tiempo es breve, las ansias crecen, las esperanzas menguan, y, con todo esto, llevo la vida sobre el deseo que tengo de vivir y quisiera yo ponerle coto hasta besar los pies de V. E., que podría ser fuese tanto el contento de ver a V. E. bueno en España, que me volviese a dar la vida. Pero, si está decretado que la haya de perder, cúmplase la voluntad de los cielos y, por lo menos, sepa V. E. este mi deseo y sepa que tuvo en mí un tan aficionado criado de servirle, que quiso pasar aún más allá de la muerte mostrando su intención. Con todo esto, como en profecía, me alegro de la llegada de V. E.; regocíjome de verle señalar con el dedo y realégrome de que salieron verdaderas mis esperanzas dilatadas en la fama de las bondades de V. E. Todavía me quedan en el alma ciertas reliquias y asomos de las Semanas del Jardín y del famoso Bernardo. Si a dicha, por buena ventura mía (que ya no sería sino milagro), me diere el cielo vida, las verá, y, con ellas, el fin de la Galatea, de quien sé está aficionado V. E., y con estas obras continuado mi deseo; guarde Dios a V. E. como puede, Miguel de Cervantes.”

Los trabajos de Persiles y Sigismunda, Historia Septentrional, será publicado por la viuda de Cervantes en 1617.

[3] « No quería componer otro Quijote —lo cual es fácil— sino el Quijote. Inútil agregar que no encaró nunca una transcripción mecánica del original; no se proponía copiarlo. Su admirable ambición era producir unas páginas que coincidieran ­palabra por palabra y línea por línea­ con las de Miguel de Cervantes.” In Pierre Ménard – Autor del Quijote, de Jorge Luís Borges

[4] E. C. Riley “Introducción al Quijote” Biblioteca de bolsillo, Barcelona 2004.

[5] Lionel Trilling “Manners morals and the novel”, in The Liberal Imagination, Mercury Books, Londres 1961.

[6] « La primera ocupación de Cervantes, y la que siempre sobrepuso a todas las restantes fue la de seguir contándonos una historia, a pesar que haberlo hecho de modo a que ninguna de las versiones de esa historia sea totalmente fiable.

Cervantes – consciente o inconscientemente – privilegia la idea de hacer de su novela un artefacto en el cual pueda demostrar que el efecto de historicidad es pura ficción y que, tal como es descrito, un acontecimiento es una selección de palabras.

En todo el Quijote subyace un modus que parece querer demostrar que cualquier narración, crónica o descripción histórica puede ser en definitiva entendida como una forma ficcional, y que un acontecimiento escrito o simplemente descripto, es siempre una selección de palabras.

No por casualidad el libro esta lleno de dobles e incluso triples versiones de un mismo suceso, contadas, aludidas o simplemente inferidas. » in Anotaciones sobre el Quijote, de Alvaro García de Zúñiga.

[7] E. C. Riley “Introducción al Quijote”, p13 Biblioteca de bolsillo, Barcelona 2004.

[8] http://observador.pt/especiais/podem-os-livros-trazer-os-mortos-de-volta/